quarta-feira, 12 de março de 2008

Keuschnig fechou os olhos com força para não chorar, mas também para assim melhor saborear as lágrimas



Via tudo como que pela última vez.
Enquanto ainda estava a observar Beatrice, ela já o perdera.
Ele já não lhe pertencia, tinha apenas que fingir que sim; tinha de o fazer.
Houve qualquer coisa nele que estalou, em seguida baralhou-se tudo.
Um quebrar de alma bem complicado, pensou.
Alguns estilhaços de sentimentos tinham perfurado o invólucro
e ele ficara petrificado para sempre.
Quando se fala do corpo, não se poderá ao mesmo tempo falar de uma dor horrível?
Havia no corpo feridas horríveis, na alma a dor horrível.
E as feridas do corpo eram por vezes lindas, feridas que era
pena que cicatrizassem – na alma havia só uma dor horrível.
«Acho que comi de mais», disse ele a Beatrice, que o olhava
de quando em vez, preocupada, sim, mas não comovida.
Uma semente com forma de bala passou pela janela. Misericórdia!
Keuschnig teve a impressão de que a merda dentro dele se lhe tinha posto atravessada.
Em breve daria um traque bem alto em pleno quarto.

A Hora da Sensação Verdadeira,
ed. Difel (1978), 1988, p. 28
Peter Handke