quarta-feira, 25 de julho de 2007

em espiral


imagem: currituck light stairs # 1,
Frank Tozier



Quando vejo umas escadas em caracol vejo também memórias de uma infância que nunca teve o hábito diário ou esporádico de percorrer umas escadas em caracol. Mas o que é certo é que esta memória , diria quase de fantasia, tem contornos de realidade a cheirar a naftalina típica das arcas de roupas usadas, roupas da avó e bisavó.

As escadas que custam a subir, que obrigam a um esforço sobrenatural, nunca se esvaem da nossa história, a história de cada um.
Mas as que sobem em caracol, essas, por serem tão rendilhadas no seu percurso, tão estonteantes, fazem-se a rir, por entre brincadeiras e vertigens que sabem bem.
São escadas que expressam um movimento que cresce em espiral, têm vida em si próprias. Parece que aquilo a que conduzem, lá em cima, é algo especial e digno de ser alcançado pela repetição de voltas e mais voltas. Lá em cima é maior do que cá em baixo.
Deve ser este imaginário que construiu uma memória minha (ou a memória é que construiu o imaginário) que, na realidade, nunca se esboçou no meu passado.

As escadas em caracol fazem parte daquelas memórias que são reinventadas por nós talvez para completar as imagens rarefeitas daquilo que a nossa memória nos lembra que um dia fomos dentro de um contexto que nos lembra para sermos algo.
A memória vai-se condimentando à medida que vou actualizando, em processo e não em fim, a minha identidade.






rascunho



se pudesse decifrar as entrelinhas do que sinto e penso,
então viajaria em constante viagem
e olharia por debaixo das pedras da calçada portuguesa
a sombra de pó gasta pela miserável vidinha daqueles que a pisam,
todos os dias
à mesma horinha

no mesmo destino.

nesta cruel confusão
a meio de arranhadelas de gato preto carente
desdobro os meus olhos em mais dois
na urgência de focar a imagem desfocada do que escrevo
e
sinto
e
penso.