terça-feira, 31 de julho de 2007

cadáver esquisito I


Amanhã na batalha chorarás por mim
e por ti quem sabe eu te espere algures num pedaço de terra num pedaço de vidro partido debaixo de pés, sem pé, respiro fumos que me inebriam e me levam acima de um céu bem azul onde um gato se perdeu. Desci pela escadaria do palácio que estava a ser esquecido e perdi-me na contemplação de uma nuvem de mosquitos. E desta nuvem ecoaram vozes macabras que faziam sair das suas pinças chupadores rostos de sangue. Como gárgulas, aquelas caras que surgem nas portas das igrejas, seres humanos ou mortos? dentro desta morgue mesmo em cima da minha casa.
Pronto, está bem, eu paro e fico aqui suspensa no ar, não me movo, só olho, só cheiro e desculpa-me mas não vou conseguir conter um grito, aqui, sozinho, e ninguém me ouve … AH AHHHHHHHHHHHHH







Cristina, Ana, Raquel, António, Inês e Celina

Tropical by night







segunda-feira, 30 de julho de 2007

noite de lua cheia

fotografia: Ricardo Cruz



a noite de lua laranja

conto I



Versões, mundos (d)escritos em português

(Contos de vários autores)

Mia Couto, Moçambique



A despedideira

Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol. O meu quero-o nuvem. Há mulheres que falam na voz do seu homem. O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios. Para ser a minha voz quando Deus me pedir contas. No resto, que tenha medo e me deixe ser mulher, mesmo que nem sempre sua. Que ele seja homem em breves doses. Que exista em marés, no simples ciclo das águas e dos ventos. E, vez em quando, seja mulher, tanto quanto eu. As suas mãos as quero firmes quando me despir. Mas ainda mais quero que ele me saiba vestir. Como eu se mesma me vestisse e ele fosse a mão da minha vaidade.

Há muito tempo, me casei, também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou já não me deixou a mim. Que eu já era outra, habilitada a ser alguém. Às vezes, contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem. Lembro do tempo em que me encantei, tudo era um princípio. Eu era nova, dezanovinha.

Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de recado. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, voz digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra, eu me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.

Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira-vez. Como se aquele momento fosse, afinal, toda a minha vida. Aconteceu aqui, neste mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa sem voar, quase nidificava. Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.

No entanto, aparentava distância. O fumo escapava entre os seus dedos. Não levava o cigarro à boca. Em seu parado gesto, o tabaco a si se consumia. Ele gostava assim: a inteira cinza tombando intacta no chão. Pois eu tombei igualzinha à cinza. Desabei inteira sob o corpo dele. Depois, me desfiz em poeira, toda estrelada no chão. As mãos dele: o vento espalhando cinzas. Eu.

Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventora de sombras. A manhã, essa, é um caracol. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do tempo.

Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. Demais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns. Nunca eu pensei que, nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração, tudo iria acabar. E, afinal, ele anunciou tudo nessa noite. Que a paixão dele desbrilhara. Sem mais nada, nem outra mulher havendo. Só isso: a murchidão do que, antes, florescia. Eu insistia, louca de tristeza. Não havia mesmo outra mulher? Não havia. O único intruso era o tempo, que nossa rotina deixara crescer e pesar. Ele se chegou e me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo longe da boca. Meu peito erra um rio lavado, toda escoada no estuário do choro.

Deixem-me agora evocar, aos goles da lembrança. Enquanto espero que ele volte, de novo, a este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrência. Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou na vertigem. Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.

Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: o que brilho é por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água. Mesmo que surja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.

Pedi-lhe que viesse uma vez mais. Para que de novo se despeça de mim. E passados os anos tantos que já nem cabem na lembrança, eu ainda chore como se fosse a primeira despedida. Porque esses adeus, só esse aceno é meu, todo inteiramente meu. Um adeus à medida de meu tanto amor.

Por isso ele virá para renovar despedidas. Quando a lágrima escorrer no meu rosto eu a sorverei, como quem bebe o tempo. Essa água é, agora, meu único alimento. Meu último alento. Já não tenho mais desse corpo apenas pela ferida de o perder. Por isso, refaço a despedida. Seja esse o modo do meu amor se fazer nosso. E eterno.



domingo, 29 de julho de 2007

kiss




Kiss me again like anyone else kissed
Touch me gently
And play a song for me.
I’ll dance through the waves of silence
Behind the walls
Like a spoiled child
Hoping that your song
Enjoy my movement.



imagem: Passion-Giclee
Plamen Temelkov

uma corrente de ar



Não passa de uma corrente de ar. Matá-la? Como? As janelas estão fechadas, a porta aferrolhada e, no entanto, com certeza, o ar corre, arrasta-se, espia-me. Envolve-me. Entra por todos os lados e gela-me. De onde vem e por onde passa?


Matá-la, como se fosse o pavio de uma vela e deixá-la assim negra e torcida no chão como uma serpente morta, a cabeça esmagada e o sangue frio formando uma poça imunda e viscosa. Um sopro que destruiria esse sopro frio que me atravessa as costas, hálito vindo da rua, do mundo que me escuta: esse frio que foi concebido contra mim. Esse ar: assassiná-lo. Soprar para que fique sem sopro. Palavra acertada! Soprar a vela! Mas como conseguir matar essa filha do ar, que me está a matar?



Max Aub
Crimes Exemplares

some eyes are bigger than others





fotografia: rapariga
Vibrissa

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Mulher Gata

imagem: retirada do livro Saha, a gata;
Colette, ilustração de José Paulo Ferro


gosto muito deste desenho.
não por ser enigmático ou feito a carvão
mas sim por mostrar uma face de mulher triste
numa figura de gato
Gata
Mulher Gata
a olhar para ti
a olhar-te e a ver-se a ela própria
num painel espelhado deslocado da moldura
seguro por um fio
de pesca
no vazio da distância entre a Mulher Gata e tu
só ela
por si
existe
existirá
na sombra escura das portas entreabertas
a ver-te existir
por ti
Só.



curiosity

a curiosidade matou o gato
mas o gato não morreu
foi bater àquela porta
onde a velhota não atendeu
então espreitou pela janela
e viu tintas de cor como nunca
em cima de uma tela
como nunca alguém pintou
o que de dentro imagina e o que de fora ausentou




imagem: Curiosity, Jon Bertelly

quarta-feira, 25 de julho de 2007

em espiral


imagem: currituck light stairs # 1,
Frank Tozier



Quando vejo umas escadas em caracol vejo também memórias de uma infância que nunca teve o hábito diário ou esporádico de percorrer umas escadas em caracol. Mas o que é certo é que esta memória , diria quase de fantasia, tem contornos de realidade a cheirar a naftalina típica das arcas de roupas usadas, roupas da avó e bisavó.

As escadas que custam a subir, que obrigam a um esforço sobrenatural, nunca se esvaem da nossa história, a história de cada um.
Mas as que sobem em caracol, essas, por serem tão rendilhadas no seu percurso, tão estonteantes, fazem-se a rir, por entre brincadeiras e vertigens que sabem bem.
São escadas que expressam um movimento que cresce em espiral, têm vida em si próprias. Parece que aquilo a que conduzem, lá em cima, é algo especial e digno de ser alcançado pela repetição de voltas e mais voltas. Lá em cima é maior do que cá em baixo.
Deve ser este imaginário que construiu uma memória minha (ou a memória é que construiu o imaginário) que, na realidade, nunca se esboçou no meu passado.

As escadas em caracol fazem parte daquelas memórias que são reinventadas por nós talvez para completar as imagens rarefeitas daquilo que a nossa memória nos lembra que um dia fomos dentro de um contexto que nos lembra para sermos algo.
A memória vai-se condimentando à medida que vou actualizando, em processo e não em fim, a minha identidade.






rascunho



se pudesse decifrar as entrelinhas do que sinto e penso,
então viajaria em constante viagem
e olharia por debaixo das pedras da calçada portuguesa
a sombra de pó gasta pela miserável vidinha daqueles que a pisam,
todos os dias
à mesma horinha

no mesmo destino.

nesta cruel confusão
a meio de arranhadelas de gato preto carente
desdobro os meus olhos em mais dois
na urgência de focar a imagem desfocada do que escrevo
e
sinto
e
penso.



segunda-feira, 23 de julho de 2007

numa dança de mulher sem braços



Olhávamos agora a bailarina que ocupava o centro da sala numa dança de mulher sem braços. Dançava como se fosse surda e não pudesse seguir o ritmo da música. Dançava como se não pudesse ouvir o som das castanholas. Dança isolada e separada da música, de nós, da sala, da vida. As castanholas soavam como passos de fantasmas.


Ela dançava, rindo e suspirando e respirando tudo a seu favor. Dançava os seus medos, parando no meio de cada dança para atender a críticas que não podia ouvir ou para se entregar ao aplauso que não tínhamos feito. Ouvia música que não podíamos ouvir movida por alucinações que não tínhamos.

Os braços foram-me tirados, cantava.
Fui punida por abraçar. Abracei. Prendi todos os que amei. Prendi nos momentos mais belos da minha vida. Fechei nas mãos a plenitude de cada hora. Os braços apertados no desejo de abraçar. Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite, o mundo inteiro e quis retê-los. Quis acariciar, curar, embalar, aclamar, envolver, cercar.

Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram; partiram de mim. Tudo passou então a evitar-me. Estava condenada a não prender.

A tremer agitada ficou a olhar para os braços agora estendidos diante dela.

Olhou as mãos tão apertadas e abriu-as devagar, tão completamente como Cristo; abriu-as num gesto de abandono e de dádiva; era a renúncia, o perdão, abrir os braços, abrir as mãos, deixando as coisas seguirem o seu curso.

Eu não soube suportar a passagem das coisas. Tudo o que flui, tudo o que passa, tudo o que mexe sufoca e enche-me de angústia.

E ela dançava; dançava na música com o ritmo dos ciclos da Terra, voltava-se ao voltar-se a Terra, disco, virando todas as faces, ora para a luz ora para o escuro, dançando em direcção à luz do dia.



Anaïs Nin
retirado de A casa do Incesto

imagem,
the fire dancer, Ab Scott

sábado, 21 de julho de 2007

fistful of love


I was lying in my bed last night staring At a ceiling full of stars When it suddenly hit me I just have to let you know how I feel

We live together in a photograph of time I look into your eyes And the seas open up to me I tell you I love you And I always will And I know you can't tell me I know you can't tell me

So I'm left to pick up The hints, the little symbols of your devotion So I'm left to pick up The hints, the little symbols of your devotion

And I feel your fists And I know it's out of love And I feel the whip And I know it's out of love
And I feel your burning eyes burning holes Straight through my heart It's out of love It's out of love

I accept and I collect upon my body The memories of your devotion I accept and I collect upon my body The memories of your devotion

And I feel your fists And I know it's out of love And I feel the whip And I know it's out of love And I feel your burning eyes burning holes Straight through my heart It's out of love It's out of love

Give me a little bit serious love
Give me a little full love
Be full of love
Fists, fists, fists full of love...


Antony and the Johnsons/
Lou Reed
I’m a bird now
2005

fronteiras de viagem


de quando em vez dou por mim simplesmente a estar
envolta na penumbra desfocada do que vejo,


de quando em vez dou por mim a magicar
com vontade de pegar na minha mão e dançar,

de quando em vez dou por mim a pensar fora de mim
num espaço de sensações anónimas,

de quando em vez lá vou eu outra vez
de quando em vez chego lá

de quando em vez fico do lado de cá
no sofá de veludo azul
Solidão – ninho
onde o tempo me trespassa em radiografia
e se senta a meu lado,
e em paz se inspira
e respira
e no meu ombro descansa
para mais outra viagem
para mais outro corpo
de menina mulher
que de quando em vez se transporta para o lado de lá.



imagem: Cercle-Jaune,
wassily kandinsky

sexta-feira, 20 de julho de 2007

ofício do fazer sentido


ouço-te.
sigo, atenta, a fluidez da escolha de cada palavra que te torna real, tangível ao entendimento de ti próprio.

não te ouço.
vejo a pele enrugar-se no teu peito a cada expulsão de mais uma palavra.

(as mãos ficam escondidas, aí atrás – lugarejo de luz ténue, só teu.
e aí atrás seguras os estilhaços de vidro que delapidaste para te esculpires,
reconstruir de novo).

sinto-te.
as tuas mãos sangram e vertem lágrimas de esforço.
o teu corpo és tu.
encaminhas a tua mão a mim.
vamos.


(é pelo ofício do fazer sentido
que te amo).



imagem
Moment-Before-the-Kiss, rabi khan
(alterada por vibrissa)

terça-feira, 17 de julho de 2007

eras novo ainda


eras novo ainda
mal sabias reconhecer os teus próprios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles

esta cama de minerais acesos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou

enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme

quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado…
me despeço.


Al Berto,
O Medo


fotografia,
no journey's end,
de Marília Campos

segunda-feira, 16 de julho de 2007

fica dentro de mim



fica dentro de mim,
como se fosse

eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
no teu suor é que adivinho o rastro

das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso

em pura solidão acontecido.

transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;

depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio

na carícia de um gesto fugidio.


António Franco Alexandre
Duende



imagem: touch life, rabi khan






domingo, 15 de julho de 2007

wild at heart

excerto de Wild at Heart de David Lynch

Love me, Nicolas Cage

original, Elvis Presley

sábado, 14 de julho de 2007

de costas



As costas que cada um merece?

Há de tudo.
Costas largas
Costas estreitas
Costas mascaradas
Costas descaradas
Costas tímidas
Costas dormentes
Costas quentes
Costas frias
Costas mornas
Costas encurvadas
Costas enviesadas
Costas erguidas
Costas engessadas
Costas de bispo
Costas de freira
Costas de calceteiro
Costas de direita
Costas de esquerda
Costas de cabide
Costas de cruzeta
Costas felinas
Costas femininas
Costas masculinas
Costas de bruxa
Costas de musa
Costas dadas
Costas fechadas

Costas mágicas
Costas cegas
Costas de violino

Costas de branco
Costas de preto
Costas livres

Costas de mãe
Costas de pai
Costas de chumbo
Costas de algodão
Costas finas
Costas hirsutas
Costas de trabalho
Costas enferrujadas
Costas de barro
Costas de bebé
Costas de pele de pêssego
Costas de vidro
Costas de porcelana
Costas desnudadas
Costas bem guardadas.

As costas são aquilo que são.
Ou aquilo que queremos que sejam.
Ou aquilo que não conseguimos ocultar.
São costas, Senhor, são costas…




imagem: halloween magic, nicole marques

sexta-feira, 13 de julho de 2007

blue black velvet cat



Os gatos andam na ponta dos dedos.
Suave.
Caminham na textura de um algodão
Branco
E vêem na sombra do que são
Esgares esquivos
Silhueta de carvão desfocada
Intensa presença

Para mim



ps. uma turrinha para o Mefistófeles, a Trufa e a Nina


fotografia por Marta

wake up

Somethin' filled up
my heart with nothin',
someone told me not to cry.
But now that I'm older,
my heart's colder,
and I can see that it's a lie.
Children wake up,
hold your mistake up,
before they turn the summer into dust.
If the children don't grow up,
our bodies get bigger but our hearts get torn up.
We're just a million little god's causin rain storms turnin' every good thing to
rust.
I guess we'll just have to adjust.
With my lighnin' bolts a glowin'
I can see where I am goin' to be
when the reaper he reaches and touches my hand.
With my lightnin' bolts a glowin'
I can see where I am goin’
With my lighnin' bolts a glowin'
I can see where I am go-goin’
You'd better look out below


Arcade Fire
Funeral
GLASTONBURY 2007

dava pelo nome muito estrangeiro de Amor



Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor,
era preciso chamá-lo sem voz


difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime,

os jornais diziam,

ele vinha em estado completo de fotografia embriagada,

descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão,

a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente,

inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso,

e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se

e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos,

o Amor aparecia e desaparecia em todos eles,

e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.




os animais carnívoros
Herberto Helder


pesquisa da amiga Joana



imagem: luscious red,
Ruth Palmer 2

quinta-feira, 12 de julho de 2007

heartbeat


I see the lines in the palm of its hand now
I listen hard but no words spring to mind
And it sounds so sweet, listen to its heartbeat
And I'm drowning in its sea
Falling at its feet
Listen to my heartbeat baby
And the blood sail leaves tonight
Fated in its blindness
And it won't be long before help is at hand
And the darkness sleeps
Cushioning the heartbeat
And I killed the captain, sank the fleet
To liberate the heartbeat baby
And it sounds so sweet
And it sounds so sweet
Listen to our hearts beat
And the darkness sleeps
Cushioning the heartbeat
And I'm drowning in its sea
Falling at its feet
Listen to my heartbeat baby
It speaks to ghosts and souls alike
Springs to life, and doesn't think twice
Wrapped in the blood sail
Bathed in snow
Nailed to the source and it won't let go
Fed on the bible, grown from trees
It opened the mind and the heart was free
A home in the silence, safe from sound
Where trouble sleeps and the light is found.


David Sylvian/Ryuichi Sakamoto
HeartBeat

sometimes you just have to dance




com os pés dar o impluso, sentir os joelhos, entender o som dos nossos braços, guiarmo-nos pela consciência das nossas mãos, deixar para trás a criança mimada que reside em nós e partir... dissolver o sangue na aspirina do nosso corpo, um corpo que se fragmenta em mil.



imagem
sometimes you just have to dance
jannine binsbergen

quarta-feira, 11 de julho de 2007

how to disappear completely


That there
That's not me
I go
Where I please
I walk through walls
I float down the Liffey
I'm not here
This isn't happening
I'm not here
I'm not here

In a little while
I'll be gone
The moment's already passed
Yeah it's gone
And I'm not here
This isn't happening
I'm not here
I'm not here

Strobe lights and blown speakers
Fireworks and hurricanes
I'm not here
This isn't happening
I'm not here
I'm not here


radiohead
Kid A
Pinkpop 2001, ao vivo

corações de cor e sabor

Os corações que souberam dar entrada na minha vida eram de várias cores e tinham diferentes paladares.
Todos eram diferentes entre si.
E eu também para cada qual.

O primeiro de todos lembra-me a cor outonal das folhas das árvores grandes, assim tipo amarelo acastanhado.
Sabia a sopa de feijão quentinha salteada de coentros.
Este coração tornou-se branco e cresce dentro de mim até hoje.

O outro coração era revestido a verde musgo e cheirava a terra molhada pela chuva.
Tinha o sabor do pão com manteiga à hora do lanche e o aroma da cevada.
Este coração tornou-se violeta e está guardado dentro de mim, inexplicavelmente.

O seguinte coração era azul da cor do céu e do mar.
Tinha o sabor de um iogurte de pedaços de maçã golden.
Vieram tempestades violentas, e o céu ficou carregado de nuvens e o mar com ondas agitadas e gigantes.
Agora está cá dentro, cinzento ainda.

O último coração de que falo parecia ter a cor bordeaux, a cor do vinho de uvas de castas do sul.
Saboreá-lo era como uma entrada de pão caseiro com fatias de tomate e orégãos, regado de azeite.
Mas este coração ficou roxo de tanto apertar dentro do peito. Não tinha espaço para bater.
Agora está cá dentro e tem o sabor de ameixas de verão.

E o coração vermelho?
Seria cheio de sumo, suculento?
Não sei a que saberia…
Talvez o devorasse em 3 segundos ou então, antevendo o seu desaparecimento, decidiria saborear o néctar, devagarinho, dos tecidos vivos que estavam dentro dele.

Acho que teria o paladar de tâmaras enroladas em fatias de bacon e o arrepio de um movimento de flamenco.

Ou então a frescura de um gelado de amoras silvestres.
Não duraria muito tempo nesta altura de calor.




imagem: meim

por vezes...




por vezes sou assolada pela ausência do poder de desiludir.



tenho por hábito deixar-me ser sensível ao que de inexplicável o encontro com o outro, ser desejado, provoca em mim.

com isso, construo uma ponte de entendimento entre os dois através daquilo que em mim e de mim me é possível tornar transparente, num fluxo natural de partilha.



mas existe um senão.



acontece quando o outro, ser desejado, se descompromete com essa minha consciente tranparência e age de acordo com o que vai exigindo de si próprio para si próprio. as expectativas mútuas, que cada um esboça de cada qual, vão-se diluindo porque ambos não seguem o mesmo caminho.



por vezes não consigo desiludir.

sou desiludida.





fotografia de Marília Campos,
bath

segunda-feira, 9 de julho de 2007

a man and a woman


Little sister don't you worry about a thing today
Take the heat from the sun
Little sister
I know that everything is not ok
But you're like honey on my tongue
True love never can be rent
But only true love can keep beauty innocent

I could never take a chance
Of losing love to find romance
In the mysterious distance
Between a man and a woman
No I could never take a chance
'Cos I could never understand
The mysterious distance
Between a man and a woman

You can run from love
And if it's really love it will find you
Catch you by the heel
But you can't be numb for love
The only pain is to feel nothing at all
How can I hurt when I'm holding you?

I could never take a chance
Of losing love to find romance
In the mysterious distance
Between a man and a woman

And you're the one, there's no-one else
You make me want to lose myself
In the mysterious distance
Between a man and a woman

Brown eyed girl across the street
On rue Saint Divine
I thought this is the one for me
But she was already mine
You were already mine…

Little sister
I've been sleeping in the street again
Like a stray dog
Little sister

I've been trying to feel complete again
But you're gone and so is God

The soul needs beauty for a soul mate
When the soul wants… the soul waits …

No I could never take a chance
Of losing love to find romance
In the mysterious distance
Between a man and a woman

For love and faith and sex and fear
And all the things that keep us here
In the mysterious distance
Between a man and a woman

How can I hurt when I'm holding you?
U2

domingo, 8 de julho de 2007

imagem de um mundo


Christina's World
Andrew Wyeth
1948





sábado, 7 de julho de 2007

a dança dentro de mim


Potito, Duquende, Belen maya, El grilo, Tomatito-bulerias
Carlos Saura, Flamenco

sexta-feira, 6 de julho de 2007

um imprevisto num lugar comum

Una mañana, una mujer percibe algo extraño en el bar donde desayuna todos los días: todos los demás clientes y camareros están en silencio. Todos miran al suelo. Nadie toca su desayuno. De repente, comienza a escucharse una canción...


7:35 de la mañana
curta metragem de Nacho Vigalondo

freedom of speech


Jesse James and Frank James,
Billy the Kid and all the rest,
Supposed to be some bad cats
Out in the West.
But when they dug me,
And my gangster ways,
They hung up their guns,
And made into their graves.
Cause I'm a gangster of love,
Say, I'm a gangster of love.
Oh, well now,
When I walk down the street,
All the girls that I meet Say: "he's a gangster of love"
I robbed a local beauty contest,for their first place winner,they found her with me out in Hollywood,eating a big steak dinner.
They tried to get her to go back,to pick up her prize.
She stood up and told them:"You just don't realize, that he's a gangster of love"
And in the morning,gangster of love.
When I walk in to a bar,girls from... from near and far,say: "he's a gangster of love".
I jump on my white horse Cadillac,
I ride across the border line,
I rope 65 girls,
I kiss them all the same time,
I take 25 or 30,
I put 'em all on a freight,
A million dollar reward for me,
In each and every state,
Sheriff say "Is you Johnny "Guitar" Watson?"
In a very deep voice
And I say "yes sir brother sheriff, and that's your wife on the back of my horse
"Cause I'm a gangster of loveI'm a gangster of love
When I walk down the street,
All the girls that I meet Say: "he's a gangster of love"


Johnny "Guitar" Watson
Gangster Of Love (1979)

bengala astro sentimental


"A mulher do signo Peixes é, antes de tudo, uma grande romântica, atraída pelo estravagante, pelo mágico e pelo maravilhoso.

Corresponde ao tipo Anfitrite, que é a filha das profundidades, sensível acima de tudo à magia do domínio amoroso.

Pertencer totalmente e sem defesa a um homem, e sentir que no meio desta dádiva que é a humanidade inteira que ela abraça, é a sua verdade amorosa.

Perante uma tal inflação sentimental, evitem matar a poesia do vosso amor, pois destruiam o seu fervor.

Naturalmente, o seu poder de ilusão pode ser muito perigoso; ela deve também temer as aventuras rocambulescas, os vínculos neblosos, as esperanças insensatas, estes belos amores, demasiados belos para serem verdadeiros, estas paixões loucas, demasiado loucas para serem viáveis.

O perigo que se apresenta para este tipo de mulheres é o do amor anónimo, do amor oculto.

(...)

a mulher é capaz de amar em silêncio, em segredo, ao abrigo de todos os olhares, mesmo que o inspirador de uma tal paixão não suspeite de nada."


André Barbault

Peixes
imagem, Amano, chimera


Agora
mudo as águas às minhas mágoas
para
depois
me deixar absorver pela leveza
do que vejo.

Imiscuir-me...
nos pequenos por menores... que sejam
Respirar com guelras de peixe.

Tornar invisível
o esboço da experiência da minha aparência,

Ouvir o eco da minha voz
no lado interno dos tímpanos de quem ouve
sem querer ouvir,

Memorizar os gestos do corpo
onde
eu quero dançar,

Mover-me aí
alimento de algas verdes,

Construir significados na osmose da minha experiência,
aí.


quinta-feira, 5 de julho de 2007

Capitão Romance




Não vou procurar quem espero Se o que eu quero é navegar Pelo tamanho das ondas Conto não voltar Parto rumo à primavera Que em meu fundo se escondeu Esqueço tudo do que eu sou capaz Hoje o mar sou eu Esperam-me ondas que persistem Nunca param de bater Esperam-me homens que desistem Antes de morrer Por querer mais do que a vida Sou a sombra do que eu sou E ao fim não toquei em nada Do que em mim tocou Eu vi Mas não agarrei Parto rumo à maravilha Rumo à dor que houver pra vir Se eu encontrar uma ilha Paro pra sentir E dar sentido à viagem Pra sentir que eu sou capaz Se o meu peito diz coragem Volto a partir em paz Eu vi Mas não agarrei


Ornatos Violeta,
O monstro não precisa de amigos

terça-feira, 3 de julho de 2007

história trágica com final feliz




“... É que estou no corpo errado... Daí o coração bater muito rápido... É um coração de pássaro... Eu sou um pássaro..."

As pessoas abanavam a cabeça e murmuravam: “... É tolinha..., ... vai morrer... não dura muito tempo...”


Regina Pessoa
2004


vejo-te como se pode ver através desta chuva oblíqua...

... um bordo magro do teu gesto
como se no estreito fosco
vejo-te
inclinadamente um pouco
apenas como
pode ser
um impossível esboço
palavra nua através de ti
chove nos meus olhos como se morresses hoje.


azul, Carlos Bica
Vejo-te como se pode ver através desta chuva oblíqua
granito editores

segunda-feira, 2 de julho de 2007

slo fuzz




I wish i could say the same of myself, that i'm in perfect harmony.
That i do not use the sword of my tongue to lash out at the enemy.
That i do not fear the light.That i do not stray from Love as my guide.
That i'm at peace inside.
And all the pieces are fine - they dance and sing in unity.
A dum dum dum dee daa da deee.

I wish I could fly through the sky and the moon above me.
I wish I could talk to the Gods and the birds above me.
It's not fun to be so blind.
To be so blind.

I wish i could stay in the present day not lapsing into vicious sleep.
Cause it gives my bones a brand shiny new home - one that does not confine me.
And i do not fear the Light.
And i do not stray from Love as my guide.
And i'm at peace inside.
And all the pieces are fine. They dance and sing in unity.
A dum dum dum dee daaa da deeeee.

I wish I could fly through the sky and the moon above me.
I wish I could talk to the Gods and the birds above me.
It's not fun to be so blind.
To be so blind.

Slo fuzz in the morning,where i can tempt you to be my air...
But it's not enough to be lovely when i feel other things i can not share.
That i can't.


Sol Seppy
The Bells Of 1 2

o meu ombro por um abraço teu



estar de partida permanentemente faz crescer uma carapaça
impermeável
que de tão dura e pesada
deforma, passo a passo,
o ombro ressequido de quem recusa
e os braços atrofiados de quem se fecha.

querer ficar a dar (-me) faz crescer um vazio em espiral
que ao mesmo tempo se vai diluindo
na vontade do outro em receber (-me).

(ecos moribundos transformam-se em vibrações de sentidos)

o ombro descontrai e alarga para (te) apoiar,
os braços crescem e alongam para (te) aconchegar.





imagem: detalhe de A satisfação, Gustav Klimt